Génesis


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Nuno Júdice »»
 
O Estado dos Campos (2003) »»
 
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Génesis
Génèse


No princípio era o verbo, e eu traduzia-o
em palavras com um sentido fundo como o poço
de onde as mulheres puxavam os baldes de água,
à tarde, para refrescar o chão de agosto. Nas
cordas de roupa do quintal, eu estendia as palavras
para as secar: e via o sol atravessá-las até ao osso,
dissecando o seu corpo mais vago — as vogais fechadas
do fim, ou a enunciação de um infinito
Até ao limite do verbo.

No principio também eram as coisas: umas
sobre as outras, no alinhamento curvo do destino,
como se não estivessem para cair nessa trepidação
de rimas que um fim de verso pode trazer. Então,
levantava-as do chão onde se tinham partido em pedaços,
as coisas brancas da lua e as coisas vermelhas do sol,
e colava-as na parede, vendo o muro subir
até ao tecto celeste.

E no fim, volta a ser o verbo. Arranha-me a língua
com as suas unhas de consoantes; e pego-lhe ao colo,
para que não fira os pés nas pedras do campo, ouvindo
a sua voz de carne e osso escrever-me, no fundo
da cabeça, e a toda a largura da alma, a frase
redonda do amor. Trabalho a sua sintaxe, até
descobrir as articulações do segredo; e abraço
o corpo que nasce na conjugação
das suas pálpebras, abertas até ao fundo
dos olhos, onde te vejo.

Au commencement était le verbe, et je l'ai traduit
en paroles avec un sens profond comme le puits
où les femmes viennent tirer des seaux d'eau,
le soir, pour rafraîchir le sol au mois d'août. Sur les
cordes à linge de la cour, j'ai étendu les paroles
pour les sécher : et j'ai vu le soleil les traverser jusqu'à l'os,
disséquant leur corps plus abstrait – les voyelles fermées
de la fin, ou l'énonciation d'un infini
jusqu'à la limite du verbe.

Au commencement étaient aussi les choses : les unes
sur les autres, dans l'alignement courbé du destin,
comme si elles s'apprêtaient à tomber dans cette appréhension
des rimes qu'une fin de vers peut comporter. Aussi
les ai-je soulevées du sol où elles étaient en morceaux,
choses blanches de la lune et choses rouges du soleil,
et je les ai collées au mur, voyant la paroi s'élever
jusqu'au plafond céleste.

Et à la fin, il y eut à nouveau le verbe. Il me gratte la langue
avec ses ongles de consonnes ; et je le prends dans mes bras,
pour qu'il ne se blesse pas les pieds contre les pierres, entendant
sa voix de chair et d'os m'écrire, dans le fond
de la tête et de toute la largeur de l'âme, la ronde phrase
de l'amour. Je travaille sa syntaxe, jusqu'à
découvrir les articulations du secret ; et j'embrasse
le corps qui nait dans la conjugaison
de ses paupières, ouvertes jusqu'au fond
des yeux, où je te vois.


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Paul Klee
Jadis surgi du cri de la nuit (1918)
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