Sob um guarda-chuva


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Cassiano Ricardo »»
 
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Sob um guarda-chuva
Sous un parapluie


1
As luzes caíram trêmulas, na calçada.
E escorrem líquidas.

São luzes de todas as cores,
em pequenos naufrágios sobre o asfalto.

Se eu pudesse gemer como este vento,
como diria o poeta. . .
E abro o pequeno céu com asa de morcego
mas chove em mim pelo vão de uma estrela.

A chuva me dá, sempre, uma sensação de raiz.
Tenho a impressão de estar coberto
de folhas verdes, espirrando água.
O mar estronda, carregado de prata
e peixes.
E eu logo penso em meu pai, lavrador.
Roupa cheirando chuva, o cabelo escorrido na testa.
Os sapatos no barro.
A chuva, para ele, era uma festa com arco-íris
ou sem arco-íris.

Pássaro branco sob o guarda-chuva
em exercício de ficar parado
sinto-me preso entre os quatro pontos cardeais
desta esquina pingando horas.
Nada mais falso do que um boletim meteorológico.

Ganhou da lua e da minha esperança.
Onde estarão os pequeninos barcos de papel de minha
 infância?
Estarão jogados, como objetos já sem uso
no cemitério dos navios mortos?

Penso na seca do Nordeste
no país das fatalidades cíclicas e dos contrastes
entre a rosa do sol e o Dilúvio.
A rosa do sol escondida no abismo do mapa
inteiramente cor de cinza.
A sensação da ausência, a árvore da chuva
desfeita em galhos torrenciais.
E eu, aqui, a afogar-me em água e, lá, o Nordeste de
 rosto enxuto.

2
O céu me atrai, porém a terra — com este cheiro
de chuva —
me dá uma sensação de raiz.

A terra pode mais que o céu, quando a chuva
me molha a memória, me fecunda,
e eu sinto peixes e orquídeas no corpo.
Mas enquanto a chuva cai, torrencial,
e o vento a arrasta pelos cabelos de prata,
fico pensando, sob o meu guarda-chuva.

Penso que é absurdo comparar com a chuva
as nossas lágrimas (isso é demais, ó poeta).
Lágrimas quentes, que nos queimam os olhos,
e caem por dentro sobre ocultas feridas,
com este choro sem sal.

Além disso, os problemas municipais já esquecidos
e os nacionais, também, renascem, sob a chuva.
Os automóveis gritam, pedindo passagem,
uns roucos, outros tocando um começo de música.
Discutem prefeitura e tarde escura
a eterna questão do trânsito.
Um trovão quis contar-me um violento segredo
mas soletrou, apenas. Que monstruosa verdade
não terá ele pretendido dizer-me?

3
Deus rabiscou no espaço uma palavra de fogo
que não pude entender, por não saber hebraico,
mas que deve estar escrita em alguma passagem da
 Bíblia.
Onde terá caído esta faísca elétrica?

O que vale, pra mim, é que a casinha pequenina
onde nasceu o nosso amor, tem um coqueiro ao lado.

E se Franklin inventou pára-raios de luxo
para os arranha-céus, Deus botou um coqueiro
para servir de pára-raios junto à casa do pobre.
Dia sem céu.
(Nisto um transeunte
 
saiu correndo, atrás do seu chapéu)
1
Les lumières tombent tremblantes sur le trottoir.
Et liquides s'écoulent.

Ce sont des lumières de toutes les couleurs,
de petits naufrages sur l’asphalte.

Si je pouvais gémir pareil à ce vent,
comme disait le poète...
Et j’ouvre un petit ciel aux ailes de chauve-souris
Mais il pleut sur moi par l'embrasure d’une étoile.

La pluie me donne toujours une sensation de racine.
J’ai l’impression d’être couvert
de feuilles vertes, éclaboussé par une eau.
La mer gronde, chargée d’argent
et de poissons.
Et bientôt je penserai à mon père, qui est fermier.
Linge sentant la pluie, cheveux effondrés sur la tête.
Les chaussures dans la boue.
La pluie, pour lui, était une fête, avec ou sans
arcs-en-ciel.

Oiseau blanc sous le parapluie
s'exerçant à rester immobile
je me sens coincé entre les quatre points cardinaux
dans cet endroit dégoulinant d'heures.
Rien de plus faux qu’un bulletin météorologique.

Il a gagné la lune et mes espoirs..
Où sont-ils les petits bateaux en papier de mon
 enfance ?
Ont-ils été joués, comme des objets déjà inutiles
au cimetière des navires morts ?

Je pense à la sécheresse du Nordeste
au pays des fatalités cycliques et des contrastes
entre la rose du soleil et le Déluge.
La rose du soleil cachée dans l’abîme de la carte
entièrement couleur de cendre.
Le sentiment de l’absence, l’arbre de pluie
dissous en branches torrentielles.
Et moi, ici, je me noie dans l’eau et là, le Nordeste
 est asséché.

2
Le ciel m’attire, mais la terre - avec cette odeur
de pluie –
elle me donne une sensation de racine.

La terre peut plus que le ciel quand la pluie
mouille ma mémoire, et me féconde,
je sens poissons et orchidées en mon corps.
Mais tandis que la pluie tombe,
et que le vent la traine par ses cheveux d’argent,
je me mets à penser sous mon parapluie.

Je pense qu’il est absurde de comparer nos larmes
avec la pluie (ô poète, c'est beaucoup trop).
Des larmes chaudes, qui brûlent nos yeux,
et tombent de l’intérieur sur des blessures cachées,
avec ce pleur qui n'a pas de sel.

En outre, les problèmes municipaux déjà oubliés
et aussi les nationaux, renaissent sous la pluie.
Les automobiles crient, réclament le passage,
rauques pour certains, début de musique pour d'autres.
On discute préfecture et sombre soirée
la question éternelle de la circulation.
Un orage a voulu me dire un violent secret
mais il fut à peine épelé. Quelle monstrueuse vérité
n'avait-il pas l'intention de me dire ?

3
Dieu a griffonné dans l’espace une parole de feu
que je ne pouvais comprendre, ne sachant pas l’hébreu,
Mais qui devait être écrit en quelque passage de
 la Bible.
Où va-t-elle tomber cette étincelle électrique ?

Ce qui compte pour moi, c’est que la petite maison
où notre amour est né, a un cocotier sur le côté.

Et si Franklin inventa des paratonnerres de luxe
pour les gratte-ciels, Dieu a mis un cocotier
pour servir de paratonnerre près de la maison du pauvre.
Jour sans aucun ciel.
(De là, un piéton

sort en courant, après son chapeau)
________________

Henri Cartier-Bresson
Place de l’Europe, derrière la gare Saint-Lazare (1932)
...

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