As últimas vontades


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David Mourão-Ferreira »»
 
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As últimas vontades
Les dernières volontés


Deixa ficar a flor,
a morte na gaveta,
o tempo no degrau.

Conheces o degrau:
o sétimo degrau
depois do patamar;
o que range ao passares;
o que foi esconderijo
do maço de cigarros
fumado às escondidas...

Deixa ficar a flor.

E nem murmures. Deixa
o tempo no degrau,
a morte na gaveta.

Conheces a gaveta:
a primeira da esquerda,
que se mantém fechada.
Quem atirou a chave
pela janela fora?
Na batalha do ódio,
destruam-se, fechados,
sem tréguas, os retratos!

Deixa ficar a flor.

A flor? Não a conheces.
Bem sei. Nem eu. Ninguém.

Deixa ficar a flor.

Não digas nada. Ouve.
Não ouves o degrau?

Quem sobe agora a escada?
Como vem devagar!
Tão devagar que sobe...

Não digas nada. Ouve:
é com certeza alguém,
alguém que traz a chave.

Deixa ficar a flor.
Laisse la fleur où elle est,
la mort au tiroir,
le temps sur la marche.

Tu connais la marche :
la septième marche
après le palier;
qui grince au passage ;
qui était une planque
pour les cigarettes du paquet
fumé en cachette...

Laisse la fleur où elle est.

Et ne murmure point. Laisse
le temps sur la marche,
et la mort au tiroir.

Tu connais le tiroir :
le premier à gauche,
qui reste fermé.
Qui a pu jeté la clé
par la fenêtre ?
Dans la bataille des haines,
on détruit, on enferme
sans trêve, les portraits !

Laisse la fleur où elle est.

La fleur ? Point ne la connais.
Je sais. Moi non plus. Personne.

Laisse la fleur où elle est.

Ne dis rien. Écoute.
N’entends-tu pas la marche ?

Qui, maintenant, monte l’échelle ?
Comme on est lent !
Si lentement à monter...

Ne dis rien. Écoute :
Il y a bien quelqu’un,
quelqu’un qui apporte la clé.

Laisse la fleur où elle est.
________________

Robert Mapplethorpe
Fleurs (1988)
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