Um método


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Um método
Une méthode
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(exercício pongiano)
(exercice pongien)
Insinua-te como a água em todos os interstícios de uma vida e, onde não há espaço, introduz-te à força de uma carícia subtil e paciente, acumulando-se numa intensidade sem violência.
Insinue-toi comme l’eau dans tous les interstices d’une vie et, là où il n’y a pas d’espace, introduis-toi au moyen d’une subtile et patiente caresse, s’amoncelant avec une intensité sans violence.
Sim, como a água, vigiando sempre a tua própria salinidade, a concentração de calcário - a água calcária é a mais dogmática, sufoca, obstrui. Conheces bem os perigos do calcário no coração.
Oui, comme l’eau, surveille ta propre salinité, la concentration du calcaire – l’eau calcaire est la plus dogmatique, elle étrangle et obstrue.Tu connais les périls du calcaire pour le cœur.
A água que fores não deve ser mais do que uma destilação essencial de ti, não uma abstracção, uma construção putativa.
L’eau que tu seras ne doit être rien de plus qu’une distillation essentielle de toi, non une abstraction, une construction putative
Qualquer substância estranha, como a náusea, a ira, a angústia, lhe irão desfigurar a transparência, turvar o curso - e não te conhecerás, não te reconhecerão. Serás salobro.
Quelques substances étrangères, comme la nausée, la colère, l'angoisse, viendront défigurer ta transparence, troubler ton cours – et tu ne te connaitras plus, elles ne te reconnaîtront pas. Tu seras de mauvais goût.
É certo que já se avistaram águas iradas - mas, repara, nunca de moto próprio: sempre pela instigação de sismos, pela sedição de chuvas, lamas, troncos, sempre pela violência de um excesso terceiro, de um ritmo que se subverte
Il est vrai que l'on a déjà vu des eaux furieuses - mais, tu le remarqueras, jamais à titre personnel : toujours à l’instigation de séismes, par la sédition des pluies, des boues, des troncs, toujours, par la violence et l'excès d'un tiers, d’un rythme qui subvertit.
E, quanto à angústia, é absurdo tentar aplicá-la, misturá-la na água. É claramente um elemento estranho, que fende as águas como o peso intruso de uma pedra. E, mesmo assim, repara que a água acolhe a pedra, não a repudia; envolve-a, embala-a, absorve a sua violência, anula-a, sem a repelir, sem ripostar; amortece a sua queda, deposita-a, delicadamente, num qualquer fundo, e segue o seu caminho - sempre sem angústia, sem ira.
Et quant à l'angoisse, il serait absurde d'essayer de la mettre en œuvre, et de la mélanger à l'eau. C'est clairement un élément étranger, qui pourfend les eaux comme le poids intrusif d'une pierre. Et même ainsi, tu remarqueras, que l'eau accueille la pierre, ne la répudie pas; elle l'enveloppe, la berce, absorbe sa violence, l'annule, sans la repousser, sans riposter ; elle amortit sa chute, et la dépose délicatement dans quelque fonderie et poursuit son chemin – toujours sans angoisse, sans colère.
Poderás tanto? Muitas mais lições deves à água
Pourras-tu d'autant ? Nous devons à l'eau nombre de leçons.
Repara como, prisioneira embora de leis inflexíveis, desfruta da liberdade que possui. Repara como a água não se deprime, nem se deixa comprimir, como se esquiva. O meu próprio discurso se quereria de água, mas é uma retórica de pedra. Perdoa-me por isso.
Constate comment, bien que prisonnière de lois inflexibles, elle jouit de la liberté qu’elle possède. Constate comment l'eau ne se déprime pas, ne se comprime pas non plus, comment elle s'esquive. Mon propre discours se réclame de l'eau, mais c'est une rhétorique de pierre. Aussi pardonne-moi pour cela.
Mas sê água: vê como, fluindo ou refluindo, segue convictamente essa direcção – pelos caprichos da terra, é certo, mas vê como se conforma sem a aparência de submissão, sem que realmente seja submissão. Aproveitará qualquer descuido, qualquer falha, para se evadir.
Mais sois cette eau : vois comme elle suit, fluente ou refluant, cette direction toujours convaincue – c'est certain, par les caprices de la terre, mais vois comment elle se conforme sous les apparences de la soumission, sans que cela soit réellement de la soumission. Elle profitera de la moindre inattention, de la moindre faute, pour s'évader.
Mais – é sempre ela própria, independentemente da sua quantidade ou do recipiente ou do estado, mas não se fecha, hermética, sobre si própria, recusando todo o contacto ou mistura. Molda-se ao espaço, mas preenche-o inteira, resolutamente – nada recusa do que lhe é concedido. É indiferente à sua própria grandeza.
De plus, elle est toujours elle-même, quelle que soit sa quantité, son contenant ou son état, mais ne se ferme jamais, hermétique, sur son propre, refusant tout contact ou mélange. elle se moule à l’espace, mais le remplit en entier, résolument – elle ne refuse jamais ce qui lui est accordé. Elle est indifférente à sa propre grandeur.
Se não fosse contaminá-la, diria que é, com igual convicção, um charco ou um oceano. E vê, por exemplo, como ilumina: num copo de água ou num rio, sem possuir luz própria.
Si ce n'était la contaminer, je dirais qu'elle est, avec la même conviction, un bourbier ou un océan. Et voit, par exemple, comment elle s'illumine : dans un verre d'eau ou dans un fleuve, sans posséder sa propre lumière.
Sê – e era isto que te queria dizer desde o princípio – amante como a água. Ama como a água, com amor de água. Insinuando-te. Inunda o estanque.
Sois - et voici ce que je voulais te dire depuis le début - un amant est comme l’eau. Il aime comme l'eau, avec l'amour de l'eau. Il s'insinue en toi. Inonde la carène.
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Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992)
Nuit de la Saint-Jean, 1971
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