Religião


Nom :
 
Recueil :
 
Autre traduction :
Ana Martins Marques »»
 
Risque esta palavra (2021) »»
 
Italien »»
«« précédent /  Sommaire / suivant »»
________________


Religião
Religion


  If I were called in
  to construct a religion
  I should make use of water
  (Philip Larkin, ‘Water’)

Inaugurar uma religião
adorar os pontos em que se formam
as estações do ano
os gestos de desnudar-se
o dia depois da chuva
a distância: entre uma árvore e outra árvore
entre cidades com o mesmo nome
em diferentes continentes.
Criar relíquias:
os táxis ao entardecer, as colheres
brilhando ao sol, toda tecnologia
tornada obsoleta
esboços de mãos e pés
de pintores antigos
as presas ensanguentadas
que nos trazem os gatos.
E ainda outras, íntimas, insensatas
a luz nos seus cabelos
fotografias de parentes
que não sabemos quem são.
Adotar novas bíblias:
longos romances inacabados
palavras lidas sobre os ombros
de alguém no metrô
poemas clássicos traduzidos
por tradutores automáticos.
Reconhecer enfim o divórcio
como um sacramento.
Na liturgia
tocar como partituras
os mapas das cidades.
E no Natal
só celebrar o que nasce
do sexo
para morrer
de fato.

Porque um barco volta a ser madeira
e mesmo uma casa volta a ser pedra
porque as coisas tecidas um dia se destecem
porque não é eterno o amor entre as coisas
porque mesmo o vidro mesmo o metal
perecerão
os seus olhos lentos a sua carne violenta
a eletricidade do seu pensamento
seu pequeno sorriso mesmo quando você se esforça
para disfarçar sua alegria
perecerão
restará a cinza dos seus caprichos
as coisas tolas sobre você
de que se lembrarão
seus conhecidos mais jovens
aqueles que nunca foram a sua casa
aqueles que não conheceram os seus avós
aqueles que não dividiram com você a sua cama
aqueles que mal leram os seus poemas…
  Si j'étais appelé
  à construire une religion
  Je devrais faire usage de l'eau
  (Philip Larkin, « Water »)

Inaugurer une religion
adorer les lieux où se forment
les saisons de l'année
les manières de se mettre à nu
le jour après la pluie
la distance : entre un arbre et un autre arbre
entre des villes portant le même nom
sur différents continents.
créer des reliques :
les taxis au crépuscule, les cuillers
brillant au soleil, toutes ces technologies
devenues obsolètes
croquis de mains et de pieds
des anciens peintres
les proies sanglantes
que nous ramènent les chats.
Et d'autres encore, intimes, insensées
sur les photographies la lumière
dans les cheveux de parents
dont nous n'avons plus connaissance.
Approuver de nouvelles bibles :
de longs romans inachevés
des mots lus par-dessus l'épaule
de quelqu'un dans le métro
des poèmes classiques traduits
par des traducteurs automatiques.
Reconnaître enfin le divorce
comme un sacrement.
Dans la liturgie
jouer avec les plans des villes
comme avec des partitions.
Et à Noël
ne célébrer que ce qui nait
du sexe
réellement
pour mourir.

Parce qu'un bateau redevient bois
et même une maison redevient pierre
car les choses tissées un jour se détisseront.
car l'amour entre les choses n'est pas éternel
car même le verre et le métal
périront
tes yeux lents ta chair violente
l'électricité de ta pensée
ton petit sourire, même quand tu t'efforces
pour déguiser ta joie
périront
il ne restera que les cendres de tes caprices
les choses idiotes à ton propos
dont se souviendront
tes plus récentes connaissances
qui ne sont jamais allés chez toi
qui n'ont jamais connu tes grands-parents
qui n'ont pas partagé ton lit
qui lisent tes poèmes de travers...
________________

Igor Mitoraj
Eros, yeux bandés (1999)
...

Aucun commentaire:

Enregistrer un commentaire

Nuage des auteurs (et quelques oeuvres)

A. M. Pires Cabral (44) Adélia Prado (40) Adolfo Casais Monteiro (36) Adriane Garcia (40) Affonso Romano de Sant'Anna (41) Al Berto (38) Albano Martins (41) Alexandre O'Neill (29) Ana Cristina Cesar (38) Ana Elisa Ribeiro (40) Ana Hatherly (43) Ana Luísa Amaral (40) Ana Martins Marques (48) Antônio Cícero (40) António Gedeão (37) António Ramos Rosa (39) Augusto dos Anjos (50) Caio Fernando Abreu (40) Carlos Drummond de Andrade (43) Carlos Machado (105) Casimiro de Brito (40) Cecília Meireles (37) Conceição Evaristo (33) Daniel Faria (40) Dante Milano (33) David Mourão-Ferreira (40) Donizete Galvão (41) Eugénio de Andrade (34) Ferreira Gullar (39) Fiama Hasse Pais Brandão (38) Francisco Carvalho (40) Galeria (27) Gastão Cruz (40) Gilberto Nable (46) Hilda Hilst (41) Inês Lourenço (40) João Cabral de Melo Neto (43) João Guimarães Rosa (33) João Luís Barreto Guimarães (40) Jorge de Sena (40) Jorge Sousa Braga (40) José Eduardo Degrazia (40) José Gomes Ferreira (40) José Saramago (40) Lêdo Ivo (33) Luis Filipe Castro Mendes (40) Manoel de Barros (36) Manuel Alegre (41) Manuel António Pina (32) Manuel Bandeira (39) Manuel de Freitas (41) Marina Colasanti (38) Mário Cesariny (34) Mario Quintana (38) Miguel Torga (31) Murilo Mendes (32) Narlan Matos (85) Nuno Júdice (32) Nuno Rocha Morais (434) Pássaro de vidro (52) Poemas Sociais (30) Poèmes inédits (251) Reinaldo Ferreira (17) Ronaldo Costa Fernandes (42) Rui Pires Cabral (44) Ruy Belo (28) Ruy Espinheira Filho (43) Ruy Proença (41) Sophia de Mello Breyner Andresen (32) Tesoura cega (35) Thiago de Mello (38) Ultimos Poemas (103) Vasco Graça Moura (40) Vinícius de Moraes (34)