Uma Sepultura em Londres


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Jorge de Sena »»
 
Peregrinatio ad loca infecta (1969) »»
 
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Uma Sepultura em Londres
Une sépulture à Londres


No frio e no nevoeiro de Londres,
numa daquelas casas que são todas iguais,
debruça-se sobre todas as dores do mundo,
desde que no mundo houve escravos.
As dores são iguais como aquelas casas
modestas, de tijolo, fumegando sombrias, solitárias.
Os escravos são todos iguais também:
De Ramsés II, de Cleópatra, dos imperadores Tai-Ping
De Assurbanípal, do Rei David, do infante
D. Henrique, dos Sartoris de Memphis, dos
civilizados barões do imperador D. Pedro II.
Ou das «potteries», ou da Silésia, de África,
da Rússia. (E o coronel Lawrence da Arábia
chegou mesmo a filosofar sobre a liberdade moral
dos jovens escravos com quem dormia.)
No frio inenarrável das eras e das gerações de
 escravos,
que nenhuma lareira aquece no seu coração,
escreve artigos, panfletos, lê interminavelmente,
e toma notas, historiando infatigavelmente
até à morte. Mas o coração, esmagado
pelo amor e pelos números, pelas censuras
e as perseguições, arde, arde luminoso
até à morte. – Eu quero ver publicadas
as suas obras completas – diz-lhe o discípulo.
– Também eu – responde. E, olhando as montanhas
de papéis, as notas e os manuscritos, acrescenta com
esperança e amargura – Mas é preciso
escrevê-las primeiro -.
Como têm sido escritas e rescritas! Como
não têm sido lidas. Mas importa pouco.
Naquela noite – creiam – a neve inteira
derreteu em Londres. E houve mesmo
um imperador que morreu afogado
em neve derretida. Os imperadores, em geral,
libertam os escravos, para que eles fiquem mais baratos,
e possam ser alugados sem responsabilidade alguma.
O coronel Lawrence (como anotámos acima), com os
 seus jovens escravos,
também tinha um contrato de trabalho. Mais tarde,
criou-se mesmo a previdência social.
No frio e no nevoeiro de Londres, há, porém,
um lugar tão espesso, tão espesso,
que é impossível atravessá-lo, mesmo sendo
o vento que derrete a neve. Um lugar
ardente, porque todos os escravos, desde sempre todos
aqueles cuja poeira se perdeu – ó Spártacus –
lá se concentram invisíveis mas compactos,
um bastião do amor que nunca foi traído,
porque não há como desistir de compreender o
mundo. Os escravos sabem que só podem
transformá-lo.
Que mais precisamos de saber?

Dans le froid et le brouillard de Londres,
dans une de ces maisons qui sont toutes pareilles,
il se penche sur toutes les douleurs du monde,
depuis que dans le monde il y a des esclaves.
Les chagrins sont les mêmes que ceux des maisons
modestes, en briques, fumant dans l'ombre, solitaires.
Tous les esclaves sont aussi les mêmes :
De Ramsès II, de Cléopâtre, des empereurs de TaiPing.
D'Assourbanipal, du roi David, de l'infant
D. Henrique, des Sartoris de Memphis, des
barons civilisés de l'empereur D. Pedro II.
Ou des « potteries », ou de la Silésie, de l'Afrique,
de la Russie. (Et le colonel Lawrence d'Arabie
arrive même à philosopher sur la liberté morale
des jeunes esclaves avec lesquels il couche).
Dans le froid indicible des âges et des générations
  d'esclaves,
où nul feu ne vient réchauffer son cœur,
il écrit des articles, des pamphlets, lit sans cesse,
et prend des notes, historiant infatigablement
jusqu'à sa mort. Mais le cœur, écrasé
par l'amour et les chiffres, par la censure
et les persécutions, brûle, brûle brillamment
jusqu'à sa mort. – Je veux voir la publication
de ses œuvres complètes, lui dit son disciple.
– Moi aussi, répondit-il. Et, regardant les montagnes
de papiers, les notes et les manuscrits, son espoir
et l'amertume grandissait : « Mais il faut d'abord
les écrire –.
Comme ils furent écrits et réécrits ! Car
ils n'ont pas été lus. Mais peu importe.
Cette nuit-là - croyez-moi - toute la neige
a fondu sur Londres. Et il y a même
un empereur qui est mort noyé
dans cette neige fondue. Les empereurs, en général,
libèrent leurs esclaves, afin qu'ils coutent moins chers,
et puissent être loués sans plus la moindre responsabilité.
Le colonel Lawrence (comme nous l'avons noté plus haut),
 avec ses jeunes esclaves,
avait signé aussi un contrat de travail. Et même,
plus tard, a été créé la sécurité sociale.
Dans le froid et le brouillard de Londres, il existe
cependant un endroit épais, très épais,
qu'il est impossible de traverser, même si
le vent y fait fondre la neige. Un endroit
brûlant, parce que tous les esclaves, de tous les temps,
ceux dont la poussière s'est perdue - O Spartacus -
là se concentrent, invisibles mais compacts,
un bastion de l'amour qui jamais ne fut trahi,
parce qu'il n'est pas possible de renoncer à comprendre le
monde. Les esclaves savent qu'ils ne peuvent pas
le transformer.
Que devons-nous savoir de plus ?

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Laurence Bradshaw
Tombe de Karl Marx (Londres) (1956)
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