Ecce Homo


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Manuel de Freitas »»
 
Beau Séjour (2003) »»
 
Italien »»
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Ecce Homo
Ecce Homo


Nunca amanhecera assim, num inimaginável
barracão perto da cidade gótica.
A sua casa.
Conhecia-o do Fandango,
e sabia apenas que uma tristeza sem lágrimas
lhe iluminava as tardes e as noites.

Dessa vez foi diferente. Eu acabara de partir
um copo no único pub ainda aberto
(a memória já não me devolve o nome).
Ele veio sentar-se ao meu lado, bêbedo
contra bêbedo, unidos pelo quase esplendor
da queda. Convidou-me a segui-lo e eu,
não sei bem porquê, acedi. Acompanhei-o
até às duas assoalhadas em que morava
– sem vizinhos, numa barraca de alumínio
e tabopan que fazia da palavra desespero
um eufemismo inoportuno. O cão,
pelo menos, gostou de nos ver chegar.

Depois chorou, a troco de nada. Queria apenas
um ombro concreto onde pousar a cabeça
que a mulher e as filhas já nem por engano
beijavam. Não precisava de gestos ou palavras,
bastava-lhe ser ouvido, partilhar o impartilhável
a que talvez chamasse (não me lembro bem) a dor.

Adormeceu assim, no meu ombro – e eu estava
capaz de matar (mas não a ele) por uma cerveja,
pelo gin que horas antes encontrara demasiado
cedo o chão. Ao amanhecer, abanei-o levemente,
disse-lhe que tinha mesmo de ir. Beijou-me
a mão, agradeceu com um sorriso estragado
aquele nada de nada entre dois homens
que nunca mais se voltarão a ver. Cá fora,
uma luz amordaçada desaconselhava qualquer
tentação lírica, vinha morrer nas couves,
nos dejectos vários que lhe tornavam menos só
  a solidão.

Não reconheci a cidade: pálida, desinteressante, reles.
Tremia de sono e frio ao entrar no primeiro
autocarro e quase acreditei – por algumas horas –
que existia, afinal, alguém ainda mais triste do que eu.
Je ne m'étais jamais réveillé ainsi, dans un inimaginable
hangar près de la ville gothique.
Sa maison.
Je l'avais connu par le Fandango,
et c'est à peine si je savais qu'une tristesse sans larmes
pouvait égayé les soirées et les nuits.

Cette fois c'était différent. J'avais pris un dernier
verre (je ne me souviens plus de son nom)
dans l'unique pub encore ouvert
Il était venu s'asseoir auprès de moi, ivrogne
contre ivrogne, unis par la presque splendeur
de la chute. Il m'invita à le suivre et moi,
j'acceptai, je ne sais trop pourquoi. Je l'accompagnai
jusqu'au deux pièces dans lesquelles il vivait
-- sans aucun voisin, dans une baraque en alu
et novopan qui ont fait du mot désespoir
un euphémisme inopportun. Le chien,
lui au moins, apprécia notre arrivée.

Puis il se mit à pleurer sans raison. Il voulait juste
une épaule solide où reposer sa tête
que femme et filles déjà n'embrassaient plus
que par erreur. Il n'avait pas besoin de gestes ou de mots,
il lui suffisait d'être entendu, de partager avec impartialité
ce qui pourrait s'appeler (si je m'en souviens) de la douleur.

Il s'endormit ainsi, sur mon épaule - et j'aurais été
capable de tuer (mais pas lui) pour une bière,
pour ce gin qu'il avait laissé tomber par terre
quelques heures plus tôt. Dès l'aube je le secouai
légèrement, lui dit que je devais partir. Il me baisa
les mains, me remercia avec un sourire coincé
que plus rien de tel entre deux hommes
ne se reverrait jamais plus. Là, dehors,
une lumière bâillonnée décourageait
toute tentation lyrique, et venait se perdre dans les choux,
et les déjections variées qui lui rendaient moins seule
  la solitude.

Je n'ai pas reconnu la ville : pâle, sans intérêt, misérable.
Je tremblai de froid et de sommeil en montant dans le premier
autobus et j'ai failli croire – pendant quelques heures –
qu'il existait, après tout, quelqu'un de plus triste que moi
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Oswaldo Guayasamín
Les mains de la peur (1984)
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