Pedaços de vinil com lama


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Manuel de Freitas »»
 
Beau Séjour (2003) »»
 
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Pedaços de vinil com lama
Morceaux de vinyle avec boue


Devia ser o disco mais ouvido:
a Quinta Sinfonia, numa gravação
de Klemperer. As manhãs
e as tardes auguravam um futuro
melhor, prendados costumes
que depressa perdi. Já então olhava
para a taberna da Ana,
enchendo a janela do meu quarto.
Tinha medo da sombra, do silêncio,
adivinhando em cada passo o monstro
que me habitava. E lia, para não pensar,
desacreditados escritores franceses.

Um dia, de tanto o amar,
peguei no disco e quebrei-o
em pequenos pedaços de vinil
– para doerem mais, melhor.
Mantive, não sei bem porquê,
a dura capa de cartão,
essa fúnebre alegoria da infância.
E o que sobrou do disco foi parar
ao ribeiro junto à casa dos meus pais.

Mais tarde, o ribeiro com hortas
de domingo à volta foi sufocado pelo terror
de um aldeamento, versão provinciana
de condomínio fechado, num mundo
em que são cada vez mais as portas.
Beethoven, esse, quase deixou
de me comover, soterrado como as rãs
pelas mãos invisíveis de quem mata.

O que me comove, passado tanto
tempo, é perceber que fiz a esse disco
o mesmo que faço e volto a fazer
aos corpos que julgo amar:

parti-los, muito devagar, para
que doam sempre um pouco mais.
Cela devrait être le disque le plus écouté :
la Cinquième Symphonie, sous la direction
de Klemperer. Les matins
et les soirs auguraient d'un meilleur
avenir, doté d'habitudes
que j'ai rapidement perdues. Je regardais
alors déjà la taverne d'Ana,
remplissant la fenêtre de ma chambre.
J'avais peur de l'ombre, du silence,
devinant à chaque pas le monstre
qui m'habitait. Et je lisais, pour ne pas y penser,
des écrivains français discrédités.

Un jour, de l'avoir trop aimé,
j'ai attrapé le disque et je l'ai brisé
en mil morceaux de vinyle
– pour qu'ils fassent encore plus mal, et mieux.
J'ai gardé, je ne sais pas bien pourquoi,
la couverture en carton rigide,
cette allégorie funèbre de l'enfance.
Et ce qui restait du disque a fini dans le ruisseau
près de la maison de mes parents.

Plus tard, le ruisseau et les jardins ouvriers
du dimanche alentour furent étouffée par la terreur
d'un lotissement, version provinciale
de communauté fermée, dans un monde
où il y a toujours plus de portes.
Beethoven, quant à lui, il a presque cessé
de m'émouvoir, enterrés comme un rat
par les mains invisibles de ceux qui tuent.

Ce qui m'étonne, après tant d'années,
c'est de m'apercevoir que ce que j'ai fait
à ce disque, je le fais et le refais
aux corps que je crois aimer :

afin de les briser, très lentement, pour
qu'ils me fassent toujours un peu plus mal.
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Banksy
La voix du patron
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