II. Paisagem do Capibaribe


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João Cabral de Melo Neto »»
 
O cão sem plumas (1950) »»
 
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II. Paisagem do Capibaribe
II. Paysage du Capibaribe


Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
como um cão
humilde e espesso.

Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.

Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.

Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).

O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
Sabia
de suas barbas expostas,
de seu doloroso cabelo
de camarão e estopa.

Ele sabia também
dos grandes galpões da beira do cais
(onde tudo
é uma imensa porta
sem portas)
escancarados 
aos horizontes que cheiram a gasolina.

E sabia
da magra cidade de rolha,
onde homens ossudos,
onde pontes, sobrados ossudos
(vão todos
vestidos de brim)
secam
até sua mais funda caliça.

Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.

Porque é na água do rio
que eles se perdem
(lentamente
e sem dente).
Ali se perdem
(como uma agulha não se perde).
Ali se perdem
(como um relógio não se quebra).

Ali se perdem
como um espelho não se quebra.
Ali se perdem
como se perde a água derramada:
sem o dente seco
com que de repente
num homem se rompe
o fio de homem.

Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama.

Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.

Difícil é saber
se aquele homem
já não está
mais aquém do homem;
mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
os ossos do ofício;
capaz de sangrar
na praça;
capaz de gritar
se a moenda lhe mastiga o braço;
capaz
de ter a vida mastigada
e não apenas
dissolvida
(naquela água macia
que amolece seus ossos
como amoleceu as pedras).
Au travers du paysage
le fleuve s'écoulait
comme une épée liquide, épaisse.
Comme un chien
humble et pataud.

Au travers du paysage
(fluant)
d'hommes plantés dans la boue ;
de maisons de boue
sur des îles plantées
qui coagulent dans la boue ;
paysage d'amphibiens
de boue.et de boue.

Comme le fleuve
ces hommes
sont comme des chiens sans plumes
(un chien sans plumes
est pire
qu'un chien pillé,
est pire
qu'un chien assassiné.

Un chien sans plumes
c'est comme un arbre sans voix.
C'est comme un oiseau
dont les racines sont en l'air.
Ce sont de ces choses
rongées profondément
jusqu'à ne plus rien être).

Le fleuve connaissait
de ces hommes sans plumes.
Il connaissait
leurs barbes exposées,
leurs cheveux douloureux
d'étoupe et de crevettes.

Il connaissait aussi
les grands hangars au bord des quais
(où tout
est une immense porte
sans portes)
béants
sur des horizons sentant le gazole.

Et il connaissait
la maigre ville mal famée,
où des hommes osseux,
où ponts, baraques osseuses
(ils vont tous
vêtus de bleus)
se dessèchent
jusqu'aux plus profonds de leurs gravats.

Mais il connaissait mieux
les hommes sans plumes.
Ceux-là
se dessèchent
encore plus au-delà
de leurs gravats extrêmes ;
encore plus au-delà
de leur paille ;
au-delà
de la paille de leur chapeau ;
au-delà
même
de la chemise qu'ils n'ont pas ;
bien plus au-delà du nom
même écrit sur la feuille
de papier la plus sèche.

Car c'est dans l'eau du fleuve
qu'ils se perdent
(lentement
et sans dents).
Là, ils se perdent
(comme aucune aiguille ne se perd).
Là, ils se perdent
(comme aucune horloge ne se brise).

Là ils se perdent
comme aucun miroir ne se brise.
Là ils se perdent
comme se perd l'eau renversée :
sans la dent sèche
avec laquelle soudain
se rompt dans l'homme
le fil de l'homme.

Dans l'eau du fleuve
lentement,
ils vont se perdre
dans la boue ; dans une boue
qui peu à peu
ne peut plus parler :
qui peu à peu
gagne les gestes défunts
de la boue ;
le sang d'amidon,
l’œil paralytique
de la boue.

Dans le paysage du fleuve,
il est difficile de savoir
où commence le fleuve ;
où commence
la boue du fleuve ;
où commence
la terre de la boue ;
où commence
l'homme, la peau
de la boue ;
où commence l'homme
dans cet homme.

Il est difficile de savoir
si cet homme
n'est déjà
plus en deçà de l'homme ;
plus en deçà de l'homme
capable au moins de ronger
les os de son office ;
capable de saigner
sur la place ;
capable de crier
si le moulin lui mâche le bras ;
capable
de voir sa vie mâchée
et pas seulement
dissoute
(dans cette eau douce
qui ramollit ses os
comme elle a ramolli les pierres).
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Alberto Giacometti
Buste de Diego (1956)
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