III. Fábula do Capibaribe


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João Cabral de Melo Neto »»
 
O cão sem plumas (1950) »»
 
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III. Fábula do Capibaribe
III. Fable du Capibaribe


A cidade é fecundada
por aquela espada
que se derrama,
por aquela
úmida gengiva de espada.

No extremo do rio
o mar se estendia,
como camisa ou lençol,
sobre seus esqueletos
de areia lavada.

(Como o rio era um cachorro,
o mar podia ser uma bandeira
azul e branca
desdobrada
no extremo do curso
– ou do mastro – do rio.

Uma bandeira
que tivesse dentes:
que o mar está sempre
com seus dentes e seu sabão
roendo suas praias.

Uma bandeira
que tivesse dentes:
como um poeta puro
polindo esqueletos,
como um roedor puro,
um polícia puro
elaborando esqueletos,
o mar,
com afã,
está sempre outra vez lavando
seu puro esqueleto de areia.

O mar e seu incenso,
o mar e seus ácidos,
o mar e a boca de seus ácidos,
o mar e seu estômago
que come e se come,
o mar e sua carne
vidrada, de estátua,
seu silêncio, alcançado
à custa de sempre dizer
a mesma coisa,
o mar e seu tão puro
professor de geometria.)

O rio teme aquele mar
como um cachorro
teme uma porta entretanto aberta,
como um mendigo,
a igreja aparentemente aberta.

Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo.

Depois,
o mar invade o rio.
Quer
o mar
destruir no rio
suas flores de terra inchada,
tudo o que nessa terra
pode crescer e explodir,
como uma ilha,
uma fruta.

Mas antes de ir ao mar
o rio se detém
em mangues de água parada.
Junta-se o rio
a outros rios
numa laguna, em pântanos
onde, fria, a vida ferve.

Junta-se o rio
a outros rios.
Juntos,
todos os rios
preparam sua luta
de água parada,
sua luta
de fruta parada.

(Como o rio era um cachorro,
como o mar era uma bandeira,
aqueles mangues
são uma enorme fruta:

A mesma máquina
paciente e útil
de uma fruta;
a mesma força
invencível e anônima
de uma fruta
– trabalhando ainda seu açúcar
depois de cortada – .

Como gota a gota
até o açúcar,
gota a gota
até as coroas de terra;
como gota a gota
até uma nova planta,
gota a gota
até as ilhas súbitas
aflorando alegres.)
La ville est fécondée
par cette épée
qui se déverse,
par cette
gencive d’épée humide.

À l'extrémité du fleuve
la mer s'étendait,
comme une chemise ou un linceul,
sur ses squelettes
de sable délavé.

(Puisque le fleuve était un cador,
la mer pouvait être un drapeau
bleu et blanc
déployé
à l'extrémité du cours
– ou du mât – du fleuve.

Un drapeau
ayant des dents :
car la mer a toujours
ses dents et son savon
rongeant ses plages.

Un drapeau
ayant des dents :
comme un poète pur
polissant des squelettes,
comme un rongeur pur,
un policier pur
élaborant des squelettes,
la mer,
avec ardeur,
lave toujours à nouveau
son pur squelette de sable.

La mer et son encens,
la mer et ses acides,
la mer et la bouche de ses acides,
la mer et son estomac
qui mange et qui se mange,
la mer et sa chair
vitreuse, et statufiée,
son silence obtenu,
payé au prix de toujours dire
la même chose,
la mer et son professeur
de géométrie, si pur).

Le fleuve a peur de cette mer
comme un chiot
a peur d'une porte qu'on a ouverte,
comme un mendiant,
d'une église apparemment ouverte.

D'abord,
la mer refoule le fleuve.
Ferme la mer au fleuve
à ses blancs linceuls.
La mer se ferme
à tout ce qui du fleuve
est fleurs de terre,
image de chien ou mendiant.

Ensuite,
la mer envahit le fleuve.
Elle veut,
la mer
détruire le fleuve
ses fleurs gonflée de terre,
tout ce qui dans cette terre
peut croître et exploser,
comme une île,
un fruit.

Mais avant d'aller en mer
le fleuve s'attarde
près des mangliers d'eau immobile.
Le fleuve s'unit
aux autres fleuves
formant lagunes, et marécages
où, froide, la vie s'enfièvre.

Le fleuve s'unit
aux autres fleuves.
Unis,
tous les fleuves
préparent leur lutte
d'eau immobile,
leur lutte
de fruit immobile.

(Puisque le fleuve était un cador,
puisque la mer était un drapeau,
ces mangliers
sont un énorme fruit.

La même machine
patiente et utile
d'un fruit,
la même force
invincible et anonyme
d'un fruit
– travaillant encore son sucre
après la coupe –.

Allant goutte à goutte
jusqu'au sucre
goutte à goutte
jusqu'aux couronnes de terre ;
allant goutte à goutte
jusqu'à la plante nouvelle,
goutte à goutte
jusqu'à aux îles soudaines
affleurant allègres.)
________________

Gerhard Richter
Septembre (2005)
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