IV. Discurso do Capibaribe


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João Cabral de Melo Neto »»
 
O cão sem plumas (1950) »»
 
Italien »»
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IV. Discurso do Capibaribe
IV. Discours du Capibaribe


Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.

Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geleias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.

Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.

Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).
Ce fleuve
est dans ma mémoire
comme un chien vivant
dans une salle.
Comme un chien vivant
dans une poche.
Comme un chien vivant
sous les linceuls,
sous la chemise,
de la peau.

Un chien, parce qu'il vit,
est violent.
Ce qui vit
ne s'engourdit pas.
Ce qui vit blesse.
L'homme,
parce qu'il vit,
se heurte à ce qui vit.
Vivre
c'est se mêler à ce qui vit.

Ce qui vit, trouble
par le fait de sa vie
le silence, le rêve, le corps
qui rêvait de se tailler
des habits de nuages.
Ce qui vit choque,
a des dents, des arêtes, est épais.
Ce qui vit est épais
comme un chien, un homme,
comme ce fleuve.

Comme tout le réel
est épais,
Ce fleuve
est épais et réel.
Comme une pomme
est épaisse.
Comme un molosse
est plus épais qu'une pomme.
Comme est plus épais
le sang du molosse
que le molosse lui-même.
Comme est plus épais
un homme
que le sang d'un molosse.
Comme est beaucoup plus épais
le sang d'un homme
que le rêve d'un homme.

Épais
comme une pomme est épaisse.
Comme une pomme
est beaucoup plus épaisse
si un homme la mange
que si un homme la voit.
Comme elle est encore plus épaisse
si la faim la mange.
Comme elle est encore beaucoup plus épaisse
si ne peut la manger
la faim qui la voit.

Ce fleuve
est épais
comme le réel le plus épais.
Épais
pour son paysage épais
où la faim
étend ses bataillons de secrètes
et intimes fourmis.

Et épais
par sa fable épaisse ;
par le flux
de ses gelées de terre,
à l'enfantement
de ses îles noires de terre.

Car est beaucoup plus épaisse
la vie qui se dédouble
en plus de vie,
comme un fruit
est plus épais
que sa fleur ;
comme l'arbre
est plus épais
que sa semence ;
comme la fleur
est plus épaisse
que son axe,
etc. etc.

Épais,
car est plus épaisse
la vie qui se bat
chaque jour,
le jour qui s'acquiert
chaque jour
(comme un oiseau
qui à chaque seconde
va conquérir son vol).
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Karen Napaljarri Barnes
Perroquet rêveur (2018)
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