Carta aos Mortos


Nom :
 
Recueil :
 
Autre traduction :
Affonso Romano de Sant'Anna »»
 
O lado esquerdo do meu peito (1992) »»
 
Italien »»
«« précédent /  Sommaire / suivant »»
________________


Carta aos Mortos
Lettre aux morts


Amigos, nada mudou
em essência.
Os salários mal dão para os gastos,
as guerras não terminaram
e há vírus novos e terríveis,
embora o avanço da medicina.
Volta e meia um vizinho
tomba morto por questão de amor.
Há filmes interessantes, é verdade,
e como sempre, mulheres portentosas
nos seduzem com suas bocas e pernas,
mas em matéria de amor
não inventamos nenhuma posição nova.
Alguns cosmonautas ficam no espaço
seis meses ou mais, testando a engrenagem
e a solidão.
Em cada olimpíada há récordes previstos
e nos países, avanços e recuos sociais.
Mas nenhum pássaro mudou seu canto
com a modernidade.

Reencenamos as mesmas tragédias gregas,
relemos o Quixote, e a primavera
chega pontualmente cada ano.

Alguns hábitos, rios e florestas
se perderam.
Ninguém mais coloca cadeiras na calçada
ou toma a fresca da tarde,
mas temos máquinas velocíssimas
que nos dispensam de pensar.

Sobre o desaparecimento dos dinossauros
e a formação das galáxias
não avançamos nada.
Roupas vão e voltam com as modas.
Governos fortes caem, outros se levantam,
países se dividem
e as formigas e abelhas continuam
fiéis ao seu trabalho.

Nada mudou em essência.

Cantamos parabéns nas festas,
discutimos futebol na esquina
morremos em estúpidos desastres
e volta e meia
um de nós olha o céu quando estrelado
com o mesmo pasmo das cavernas.
E cada geração, insolente,
continua a achar
que vive no ápice da história.
Mes amis, rien n'a changé
en substance.
Les salaires permettent à peine de joindre les
deux bouts, la guerre n'est pas finie
et il y a de nouveaux et terribles virus,
malgré les progrès de la médecine.
De temps en temps, un voisin
meurt au nom de l'amour.
Il y a des films intéressants, c'est vrai,
et comme toujours, des femmes hors du commun
nous séduisent avec leurs bouches et leurs jambes,
mais quand il s'agit d'amour
nous n'avons pas inventé de positions nouvelles.
Certains cosmonautes restent dans l'espace
six mois ou plus, à tester leurs appareils
dans la solitude.
À chaque olympiade, il y a des records à prévoir
et dans les pays, progression et régression sociales.
Mais aucun chant d'oiseau n'a changé
avec la modernité.

Nous rejouons les mêmes tragédies grecques,
relisons le Quichotte, et chaque année
le printemps revient avec ponctualité.

Certaines habitudes, des fleuves et des forêts,
disparaissent.
Plus personne ne pose une chaise sur le trottoir
ou vient prendre l'air frais du soir,
mais nous avons des machines très véloces
qui nous dispensent de penser.

Sur la disparition des dinosaures
et la formation des galaxies
nous n'avons fait aucun progrès.
Des vêtements vont et viennent avec la mode.
Des gouvernements forts tombent, d'autres se lèvent,
des pays se divisent
et les fourmis et les abeilles continuent
fidèles à leur labeur.

Rien n'a changé en substance.

Nous chantons aux fêtes de "Joyeux anniversaire".
discutons du football au coin de la rue,
nous mourons lors de stupides désastres
et de temps en temps
l'un de nous regarde le ciel rempli d'étoiles
avec la même stupeur de l'âge des cavernes.
Et chaque génération, insolente,
continue de penser
qu'elle vit au sommet de l'histoire.
________________

Amadeo de Souza Cardoso
Don Quichotte (1914)
...

Aucun commentaire:

Enregistrer un commentaire

Nuage des auteurs (et quelques oeuvres)

A. M. Pires Cabral (44) Adélia Prado (40) Adolfo Casais Monteiro (36) Adriane Garcia (40) Affonso Romano de Sant'Anna (41) Al Berto (38) Albano Martins (41) Alexandre O'Neill (29) Ana Cristina Cesar (38) Ana Elisa Ribeiro (40) Ana Hatherly (43) Ana Luísa Amaral (40) Ana Martins Marques (48) Antônio Cícero (40) António Gedeão (37) António Ramos Rosa (39) Augusto dos Anjos (50) Caio Fernando Abreu (40) Carlos Drummond de Andrade (43) Carlos Machado (106) Casimiro de Brito (40) Cecília Meireles (37) Conceição Evaristo (33) Daniel Faria (40) Dante Milano (33) David Mourão-Ferreira (40) Donizete Galvão (41) Eugénio de Andrade (34) Ferreira Gullar (39) Fiama Hasse Pais Brandão (38) Francisco Carvalho (40) Galeria (27) Gastão Cruz (40) Gilberto Nable (46) Hilda Hilst (41) Inês Lourenço (40) João Cabral de Melo Neto (43) João Guimarães Rosa (33) João Luís Barreto Guimarães (40) Jorge de Sena (40) Jorge Sousa Braga (40) José Eduardo Degrazia (40) José Gomes Ferreira (40) José Saramago (40) Lêdo Ivo (33) Luis Filipe Castro Mendes (40) Manoel de Barros (36) Manuel Alegre (41) Manuel António Pina (32) Manuel Bandeira (39) Manuel de Freitas (41) Marina Colasanti (38) Mário Cesariny (34) Mario Quintana (38) Miguel Torga (31) Murilo Mendes (32) Narlan Matos (85) Nuno Júdice (32) Nuno Rocha Morais (434) Pássaro de vidro (52) Poemas Sociais (30) Poèmes inédits (251) Reinaldo Ferreira (18) Ronaldo Costa Fernandes (42) Rui Pires Cabral (44) Ruy Belo (28) Ruy Espinheira Filho (43) Ruy Proença (41) Sophia de Mello Breyner Andresen (32) Tesoura cega (35) Thiago de Mello (38) Ultimos Poemas (103) Vasco Graça Moura (40) Vinícius de Moraes (34)