O Novíssimo Testamento


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O Novíssimo Testamento
Le nouveau nouveau testament


  Para acabar de vez com os direitos humanos
  e restaurar os direitos divinos
 
Escrevi este testamento com sangue
de galinha
eu que não esqueço nunca a minha condição de
  pilha-galinhas
condenado a viver num galinheiro povoado de fantasmas
de galinhas-da-índia patos perus gansos garnizés
e a cacarejar pela noite fora
sem que um só galo da vizinhança me responda
nem os galos dos cataventos
– quando o galo cantar renegar-me-ás três vezes
  quando o galo cantar –
Quando era criança antes de matar uma galinha
a minha mãe pedia-me para lhe prender as pernas
  e as asas
eu metia as mãos por debaixo da saia e prendia-lhe as
  asas e as pernas com todas as minhas forças
O sangue jorrava da sua cabeça para uma malga
  com vinagre
e ficava depois muito tempo ainda a espernear no alguidar
o pequeno olho muito aberto…
Os meus sonhos estão cheios de cabeças de galinha
ainda escorrendo sangue
de milhões de asas de milhões de patas de galinha
  de milhões de ovos
Quem vai bater esta gigantesca omeleta de ovos
na frigideira celeste?
A minha alma é uma pequena alma entre biliões de
  outras almas
Que tamanho tem a alma dum mosquito?
Proclamo a minha solidariedade com todos os biliões
  de frangos do planeta
que tentam em vão escapar à máquina de depenar
  eléctrica
com todos os carneiros cabras ovelhas avestruzes
– Eu sou um cordeiro inocente que se perdeu do pastor
e não sabe senão balir –
com todas as vacas
condenadas a comer rações impróprias e a um
  orgasmo gelado
No silêncio dos estábulos elas preparam a sua vingança
enquanto sonham com um prado verde de gramíneas
– e essa vingança será terrível –
Este é um testamento escrito com o sangue
do último dos genocídios
– e esse sangue é da cor do alcatrão –
tendo como testemunhas apenas as duas metades
do meu coração
  Pour en finir avec les droits humains
  et restaurer les droits divins

J'ai écrit ce testament avec du sang
de poule
Moi qui n'oublierai jamais ma condition de
  voleur de poules
condamné à vivre dans un poulailler peuplé des fantômes
de pintades canards dindes gallinettes
et à glousser toute la nuit dehors
sans qu'un seul coq du voisinage ne me réponde
ni le moindre coq de clocher
– quand le coq chantera, tu me renieras trois fois quand
  le coq chantera –
Lorsque j'étais enfant, avant de tuer une poule
ma mère me demandait de la prendre par les pattes
  et les ailes
et je glissais mes mains sous sa robe et je lui prenais
  les ailes et les pattes de toutes mes forces
Le sang giclait de sa tête dans une écuelle de vinaigre
et elle restait longtemps encore à gigoter au-dessus
  de la bassine
son petit œil grand ouvert...
Mes rêves sont remplis de têtes de poules
dont le sang dégouline encore
de millions d'ailes de millions de pattes de poules
  de millions d'œufs
Qui donc va battre cette gigantesque omelette d'oeufs
dans la casserole céleste ?
Mon âme est une petite âme parmi des milliards
  d'autres âmes
Quelle est la taille de l'âme d'un moustique ?
Je proclame ma solidarité avec tous les milliards
  de poulets de la planète
qui tentent en vain d'échapper à la machine à déplumer
  électrique
avec tous les moutons brebis chèvres autruches
– Je suis un agneau innocent qui a perdu son berger
et qui ne sait que bêler –
avec toutes les vaches
condamnées à une mauvaise alimentation et à un
  orgasme glacé
Dans le silence des étables, elles préparent leur revanche
en rêvant d'une verte prairie de graminées
– et cette vengeance sera terrible –
Ceci est un testament écrit avec le sang
du dernier des génocides
– et ce sang est de la couleur du goudron –
ayant pour seuls témoins les deux moitiés
de mon cœur

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Koen Vanmechelen
Vesta (2021)
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