De súbito, do nada, uma carta


Nom :
 
Recueil :
 
Autre traduction :
Ruy Espinheira Filho »»
 
A casa dos nove pinheiros (2009-2012) »»
 
Italien »»
«« précédent / Sommaire / suivant »»
________________


De súbito, do nada, uma carta
Soudain, de nulle part, une lettre


1.
Sá-Carneiro disse, em carta, não incomodá-lo muito
 a possibilidade
de suicídio,
mas a consciência de
ter de morrer forçosamente um dia.
Seu correspondente deve ter pensado em tais palavras
 muitas vezes
ao escrever certos versos,
como, por exemplo
(16 anos mais tarde, com a alma já por si conturbada
de Álvaro de Campos)
alguns de Tabacaria,
nos quais observou que o dono da loja morreria,
como ele próprio,
um deixando a tabuleta, o outro versos,
que a certa altura também morreriam,
como morreria depois a rua onde estivera a tabuleta
e a língua em que foram escritos os versos,
e, por fim, o planeta girante em que tudo isto se deu.
Sim, tais reflexões já tumultuavam Sá-Carneiro,
mas com menos longo sofrimento,
porque logo soube livrar-se delas com
cinco frascos de arseniato de estricnina
em 26 de abril de 1916,
aos 26 anos de idade.
às 8 da noite, no Hotel Nice,
Paris. E assim
terminou o tormento do Esfinge Gorda,
como certa vez se definiu.
E que ainda mais gorda e com mais mistérios de esfinge
 ficou,
após a morte,
avolumando-se a ponto de mal caber no caixão,
tornando definitivamente impossível que seu enterro
fosse levado sobre um burro,
como pedira num poema,
embora tivesse lembrado
(como se antevendo sua última vontade
não sendo respeitada)
que a um morto nada se recusa,
e insistindo mesmo, peremptório:
E eu quero por força ir de burro.
(Não, ninguém se moveu para encontrar um burro capaz
de tal façanha,
ainda que não — como pedido —
ajaezado à andaluza.
Sim, a um morto tudo pode ser
recusado.)


2.
Não sei como as linhas acima se escreveram,
pois não havia pensado em nada parecido.
Pelo que recordo, pensara que estava velho,
não propriamente por me sentir assim,
mas por constatar que de então a agora
passara muito tempo.
É a lógica, bastante desagradável:
se muito tempo passou desde a nossa juventude
não há o que discutir: estamos velhos.
Quanto mais tempo, mais velhos.
Sem dúvida, o que de melhor havia no Paraíso,
antes da descoberta do fruto do bem e do mal,
era a ausência de lógica. Não houve nenhuma lógica
na Criação,
as possíveis justificativas do Criador não têm lógica.
Apenas, entediado por tamanha Eternidade,
Ele resolveu brincar de Deus. E, como não havia
nenhuma lógica em tudo isso
(pois só uma absoluta falta de lógica admitiria a criação
 de algo
tão tentador que poria fatalmente em risco o equilíbrio
 do Éden),
deu no que deu.


3.
Coisas assim é que eu pensava,
quando saltou do nada a carta do poeta
para outro poeta.
Assim me tem sido a vida com frequência:
tarda (às vezes indefinidamente) no que espero
e de súbito serve
o inesperado.
Tudo bem, contando que não venha a lógica
deduzir que eu tenha forçosamente de estar velho
já que de então a agora muito tempo passou.
O tempo, que se oferece ironicamente em Ontem
(que já não é),
Hoje
(que acabou de ser)
e Amanhã
(que, se chegar, não chegará,
pois logo será o que acabou de ser,
o que já não é).
Enfim, envolvido em incômodos
similares aos meus,
e em linguagem bem melhor,
suspirou Ricardo Reis: ... e quanto pouco falta
para o fim do futuro!



4.
Ah, o quanto pouco falta...
Aliás, uma característica do tempo: subtrair-se
 avaramente,
sobretudo quando gostaríamos que permanecesse
 mais...
Difícil acreditar que faz pouco,
muito pouco,
estávamos todos aqui...
E então, de súbito,
tivemos e temos que
forçosamente
morrer...


5.
Bem, Sá-Carneiro resolveu tudo por conta própria,
interrompendo o que sentia como apenas cruel
 alongamento do tempo;
apagando os remorsos que eram como
terraços sobre o Mar,
deixando-nos as palavras com que também gostaríamos
 de abrir
docemente
a nossa noite:
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais
 acabou.

1.
Sá-Carneiro a dit, dans une lettre, qu'il n'était pas
 tant indisposé
par la possibilité du suicide,
que par la conscience d'
avoir à mourir nécessairement un jour.
Son correspondant a dû penser plusieurs fois à de telles
 paroles
en écrivant certains vers,
comme, par exemple
(16 ans plus tard, avec l’âme en lui déjà troublée
de Álvaro de Campos)
ceux de Tabacaria,
dans lesquels on observe que le gérant de ce tabac va mourir,
comme lui-même,
l’un laissant l'enseigne, l’autre, des vers,
qui, à un moment donné, mourront eux aussi,
comme vont mourir la rue où était l'enseigne
et la langue dans laquelle ces vers ont été écrits,
et enfin, en tournant, la planète sur laquelle tout s'est passé.
Oui, de telles réflexions tourmentaient déjà Sá-Carneiro,
mais avec moins de souffrance,
parce qu’il a su s’en débarrasser avec
cinq flacons d’arséniate de strychnine
le 26 avril 1916,
à l’âge de 26 ans.
vers 20 heures dans l’hôtel Nice,
à Paris. Et ainsi
s'est terminé le tourment du Sphinx Gorda (Gras),
comme il se définissait parfois.
Et plus gras encore et, du sphinx, avec plus de mystères,
 encombrant
après sa mort,
au point de ne pas rentrer dans son cercueil,
rendant définitivement impossible, que son enterrement
se fasse à dos d'âne,
comme il le souhaitait dans un poème,
bien qu'il ait rappelé
(comme si entrevoyant que ses dernières volontés
ne seraient pas respectées)
que rien jamais ne se refuse à un mort,
et même insistant, péremptoire :
Je veux, en vertu de la loi, m'y rendre à dos d'âne.
(Non, personne ne s'est bougé pour trouver un âne capable
d’une telle prouesse,
même sans qu'il soit – comme souhaité –
caparaçonné à l’andalouse.
Oui, à un mort tout peut être
refusé.)


2.
Je ne sais pas comment les lignes ci-dessus ont été écrites,
Je n’avais pensé à rien de tel.
Si je m'en souviens, je pensais être vieux,
pas vraiment parce que je le ressentais,
mais pour avoir constater qu’à l’époque
beaucoup de temps s’était écoulé.
C’est une logique, plutôt désagréable :
si beaucoup de temps s’est écoulé depuis notre jeunesse
Il n’y a rien à dire, on est vieux.
Plus de temps passe, plus on est vieux.
Sans doute, le meilleur au Paradis,
avant la découverte du fruit du bien et du mal,
était l’absence de logique. Il n’y a aucune logique
dans la création,
Les justifications possibles du Créateur n’ont aucune logique.
Ennuyé par une telle éternité,
Il décida de jouer à Dieu. Et comme il n’y avait
aucune logique à tout cela
(car seul un manque absolu de logique admettra la création
 d'une chose
aussi tentatrice qui met fatalement en péril l’équilibre
 de l’Éden),
arriva ce qui est arrivé.


3.
Des choses auxquelles je pensais
lorsque bondit de nulle part la lettre du poète
à un autre poète.
Je l’ai souvent vécu :
ce retard (parfois indéfiniment) de ce qu'on espère
avant que soudain ne surgisse
l’inespéré.
Tout va bien, tant que la logique ne vient pas
déduire que je dois forcément être vieux
puisque dès lors beaucoup de temps a passé.
Le temps, qui s'est offert ironiquement Hier
(dans ce qui n’est plus),
Aujourd’hui
(dans ce qui vient d’être)
et Demain
(qui, s’il arrive, n’arrivera plus,
car bientôt ce sera ce qui vient d’être,
et qui n’est plus).
Enfin, engagé dans des embarras
semblables aux miens,
et dans un langage bien meilleur,
soupira Richard Reis : ... et combien peu restera-t-il
à la fin de l’avenir !



4.
Ah, combien peu en reste-t-il...
D’ailleurs, une caractéristique du temps est : se soustraire
 avec avarice,
surtout quand on aimerait qu’il persiste
 un peu plus...
Difficile de croire qu'il s'en moque
qu'il fait peu, très peu,
Nous en sommes tous là...
Et puis, soudain,
nous sommes, et nous devons
forcément
mourir...


5.
Bien, Sá-Carneiro a tout résolu par lui-même,
en interrompant ce qu’il sentait comme un cruel allongement
 du temps,
en effaçant les remords qui étaient comme
des terrasses sur la Mer,
nous laissant les mots avec lesquels nous aimerions aussi
 ouvrir
avec douceur
notre nuit :
Rien à faire, ma belle. L'enfant s'est endormi. Tout est
 terminé.

________________

Valeriy Franchuk
Lettre non envoyée (2020)
...

Aucun commentaire:

Enregistrer un commentaire

Nuage des auteurs (et quelques oeuvres)

A. M. Pires Cabral (44) Adélia Prado (40) Adolfo Casais Monteiro (36) Adriane Garcia (40) Affonso Romano de Sant'Anna (41) Al Berto (38) Albano Martins (41) Alexandre O'Neill (29) Ana Cristina Cesar (38) Ana Elisa Ribeiro (40) Ana Hatherly (43) Ana Luísa Amaral (40) Ana Martins Marques (48) Antônio Cícero (40) António Gedeão (37) António Ramos Rosa (39) Augusto dos Anjos (50) Caio Fernando Abreu (40) Carlos Drummond de Andrade (43) Carlos Machado (106) Casimiro de Brito (40) Cecília Meireles (37) Conceição Evaristo (33) Daniel Faria (40) Dante Milano (33) David Mourão-Ferreira (40) Donizete Galvão (41) Eugénio de Andrade (34) Ferreira Gullar (39) Fiama Hasse Pais Brandão (38) Francisco Carvalho (40) Galeria (27) Gastão Cruz (40) Gilberto Nable (46) Hilda Hilst (41) Inês Lourenço (40) João Cabral de Melo Neto (43) João Guimarães Rosa (33) João Luís Barreto Guimarães (40) Jorge de Sena (40) Jorge Sousa Braga (40) José Eduardo Degrazia (40) José Gomes Ferreira (40) José Saramago (40) Lêdo Ivo (33) Luis Filipe Castro Mendes (40) Manoel de Barros (36) Manuel Alegre (41) Manuel António Pina (32) Manuel Bandeira (39) Manuel de Freitas (41) Marina Colasanti (38) Mário Cesariny (34) Mario Quintana (38) Miguel Torga (31) Murilo Mendes (32) Narlan Matos (85) Nuno Júdice (32) Nuno Rocha Morais (435) Pássaro de vidro (52) Poemas Sociais (30) Poèmes inédits (252) Reinaldo Ferreira (23) Ronaldo Costa Fernandes (42) Rui Pires Cabral (44) Ruy Belo (28) Ruy Espinheira Filho (43) Ruy Proença (41) Sophia de Mello Breyner Andresen (32) Tesoura cega (35) Thiago de Mello (38) Ultimos Poemas (103) Vasco Graça Moura (40) Vinícius de Moraes (34)