a última dos mongoiós


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a última dos mongoiós
la dernière des mongoiós


minha avó e seu caminhar lento
mais lento que lento, sua conversa rara
seu existir cada vez mais pra dentro
sua estranha metafísica sem cor
sua vida já finda ainda na mocidade
seu sorriso tímido suas mãos delicadas
Leonízia de Andrade Jandiroba
descendente de índios mongoiós
a tribo que habitava nossa região
e jamais se rendera aos lusitanos
e que fora dizimada quase inteira
no infame Banquete da Traição
minha avó e seu silêncio selvagem
seus cabelos negros de carvão
prisioneira do Tratado de Tordesilhas
cinquenta anos trancada num aposento
apesar de duas janelas antigas
lá fora passavam o tempo e a vida
para ela tudo era memória e ferida
brincava com bonecas falava sozinha
guardava em caixas de sapato
segredos que ninguém conhecia
minha avó e seu falar para dentro
paralítica um ano numa velha cama
pagando pelos pecados de Borba Gato
e de Henrique de Sagres
levando em sua alma o peso
das entradas e das bandeiras
dos arcabuzes de uma trágica epopeia
a voz calma certeira e pausada
as duas pernas abertas em postemas
as ataduras que logo ficavam escuras
untadas de cremes, pomadas
unguentos mas nada nada nada
cicatrizava as feridas fundas
que a história e o tempo
lhe abriram sem clemência
minha avó e suas pernas de cemitério
isso a vida lhe deixou de opus
em suas pernas destroçadas:
o silêncio a dor e o odor de pus
dos conquistadores do continente
mesmo depois de sua morte
não cessou o seu mistério:
retornou do mundo dos mortos
e reclamou com minha mãe
que escolheram o vestido errado
para seu funeral...
ma grand-mère avec sa marche lente
plus lente que lente, sa rare conversation
son existence chaque fois plus repliée sur elle
son étrange métaphysique sans couleur
sa vie déjà finie encore dans la jeunesse
son sourire timide ses mains délicates
Leonízia de Andrade Jandiroba
descendante des indiens mongoiós
tribu qui habitait notre région
et qui ne se rendit jamais aux lusitaniens
et qui fut presque entièrement décimée
lors de l’infâme Banquet de la Trahison
ma grand-mère et son silence sauvage
ses cheveux d'un noir de charbon
prisonnière du Traité de Tordesilhas
cinquante ans retranchée dans sa chambre
malgré ces deux antiques fenêtres
et le temps et la vie passaient dehors
pour elle tout n'était que souvenir et blessure
elle jouait avec ses poupées parlait seule
conservant dans des boîtes à chaussures
des secrets que personne ne connaissait
ma grand-mère et son discours intérieur
paralysée toute une année dans un vieux lit
payant pour les péchés de Borba Gato
et d'Henri de Sagres
portant dans son âme le poids
des entrées et des drapeaux
des arquebuses d'une épopée tragique
sa voix calme, posée et droite
ses deux jambes écartées couvertes d'abcès
les pansements qui bientôt s'assombrissaient
barbouillés de crèmes, d'onguents
pommades, mais rien rien rien
n'a pu guérir les profondes blessures
que l'histoire et le temps
avaient en elle ouvertes sans pitié
ma grand-mère et ses jambes de cimetière
c'est ce que la vie a laissé comme opus
à ses jambes déhanchées brisées :
le silence la douleur et l'odeur du pus
des conquistadors du continent
même après sa mort
son mystère n'a pas cessé :
elle est revenue du monde des morts
et s'est plainte à ma mère
qu'on ait choisi la mauvaise robe
pour son enterrement...
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Johann Henrich Füssli
Silence (1799-1801)
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